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O protagonismo negro na abolição da escravatura brasileira e a UnB

“Falar somente da Princesa Isabel no episódio da abolição é apagar a história de Luiz Gama, José do Patrocínio, André Rebouças, abolicionistas negros que empregavam esforços para a libertação. A abolição foi o desfecho da luta de várias frentes, inclusive de projetos abolicionistas guiados por negros, esses reconhecidos em documentos na época. Só que ao longo da história esse protagonismo tem sido apagado e a gente acaba não conhecendo as lutas de abolicionistas negros, e ficamos restritos ao que foi feito por brancos”, alerta Ana Flávia Magalhães, pós-doutora em história pela Unicamp e docente na Universidade de Brasília (UnB).

Há 131 anos, em 1888, a Princesa Isabel assinava a Lei Áurea, ápice do crescente movimento abolicionista já em curso na sociedade brasileira. Antes da oficialização, o Brasil registrou lutas em diferentes pontos do país, como a greve de jangadeiros e catraieiros (pardos) no Ceará e Amazonas contra o tráfico de negros escravizados, cinco anos antes da assinatura da Lei - essa e outras resistências foram lideradas por ex-escravos ou negros libertos.

O protagonismo negro é representado pelas centenas de homens, mulheres e crianças negras presentes no retrato da Missa Campal, em 17 de maio de 1888. “Muita gente pode pensar que os negros presentes ali eram escravos, mas essa não é a realidade. A maioria eram livres ou libertos, o que incluiu Machado de Assis - abolicionista negro reconhecido recentemente na foto”, pontuou Ana Flávia.

Missa Campal celebrada em ação de graças pela Abolição da Escravatura no Brasil, 1888. São Cristóvão, Rio de Janeiro. (Foto: Antonio Luiz Ferreira)

Cortamos para 2019 e vemos uma população brasileira que acredita que o negro foi passivo na construção da liberdade racial e até mesmo da cultura brasileira. O motivo disso, segundo a doutora, é o sequestro do protagonismo negro feito pela elite branca, o que gerou, cada vez mais, uma demanda para as universidades públicas, em estabelecer diálogos e ações para resgatar a história do brasileira.

UnB em foco no debate

O reflexo de esconder a história da abolição promovida pelos negros, omitindo a existência de grupos como Liga dos Homens de Cor, Sociedade Cooperativa da Raça Negra e o Jornal da Imprensa Negra é perpetuar a ideia de marginalização dessa população.

“Em 1862, de 10 pessoas pretas e pardas, seis eram livres ou libertas. Porém, essas pessoas tinham sua condição cidadã questionada cotidianamente por sua cor ser ligada à escravidão ainda vigente. Reconhecer esse fato é entender que o fim da escravidão representou a possibilidade de solucionar o impasse do preconceito de cor e código de raça, de dar cidadania para os negros. Porém, esse pensamento persiste até hoje”, afirmou Ana Flávia.

O cenário começou a mudar com a inclusão de políticas públicas e legislação, como a Lei 10.639/2003, que estabelece o ensino da história negra, africana e indígena no ensino básica. A regulamentação propiciou o início de uma mudança nas universidades, em que houve aumento de produção acadêmica sobre o tema, além de esforços de professores de educação básica em incorporar presença negra na história do Brasil.

Para Ana Flávia, ainda há muito o que se fazer. “O problema é que lidamos com uma limitação, até mesmo cognitiva. Segundo ela, nesses 131 anos, fomos ensinados a reconhecer a presença negra apenas no lugar da escravidão. “Se eu perguntar a qualquer um sobre negros livres que fizeram história na abolição, poucos saberão dizer nomes, porque não sabemos, o que faz com que pensemos na população negra como sinônimo de insucesso, falta de realização na história. Quando falamos da cultura até o século 21, as pessoas falarão, primeiro, de homens brancos e de elite. As figuras negras são periféricas”, lembrou.

Com cerca de 50 mil alunos matriculados, a UnB registra, em 2019, apenas 11,8 mil pardos e 3,4 mil pretos. Já no mestrado, são 757 pardos e 224 pretos. Os números são resultados de políticas afirmativas para ingresso de um público mais diverso na Universidade. “A Universidade em que hoje dou aula é diferente da qual estudei, ela se parece bem mais com o cenário que encontro quando chego em cidades satélites, como Planaltina, Ceilândia e Taguatinga. É uma universidade em que, a respeito de seu corpo docente, parece mais com o país que registra 53% de pretos e pardos, sendo 57% da população negra no DF.”,pontua.

Apesar do crescimento, ainda é pequeno o número de pretos e pardos que continuam na academia, a exemplo da baixa participação de docentes negros em programas na pós-graduação da UnB - apenas 3% dos alunos (dados do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros). Segundo Ana Flávia, o motivo é que, cada vez mais, a sociedade tem feito uma reedição da escravidão em meio a um mundo livre. “O cantor Emicida, no clipe da música Eminência Parda, mostra como as pessoas negras que fogem da baixa expectativa incomodam muito. Isso ocorre porque, ainda hoje, os negros ocupam, no imaginário da sociedade, o papel de marginalizado, um local específico que ele tem que ocupar, e geralmente é assemelhado aos lugares da escravidão”, ilustra Ana.

“Isso tem muito a ver com o fato de estudantes negros na UnB não serem entendidos como estudantes. Pelo negro estar em um paradigma de escravidão, é entendido que os espaços da educação pública estão sendo mal ocupados por atender pessoas que não deveriam estar ali, a não ser como trabalhador terceirizado em situação precária”, ressaltou.

Em 13 de maio, uma reflexão deve ser feita: o protagonismo negro é visto e ouvido em nossa universidade? A quem a Universidade deve pertencer, senão às pessoas que compõem a maioria do país em que estão? “A UnB que vejo hoje é uma universidade plural e é essa universidade que precisamos defender, por meio de uma conexão com a sociedade e mostrar que a educação pública, gratuita e de qualidade é delas. Mostrar que recursos e impostos pagos pela maioria da população - que é pobre e periférica - podem ser revertidos para o benefício dessa própria população, e não só continuar a promover os privilégios das elites”, conclama Ana.

A luta dos cotistas

A UnB foi a primeira ​universidade federal a implementar essa novidade em seus processos seletivos da graduação - proporcionando que centenas de estudantes entrassem no espaço acadêmico por meio dessa nova alternativa.

O pioneirismo da UnB marcou história em 6 de junho de 2003, quando o ​Plano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial foi aprovado pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe). No ano seguinte, 20% das vagas do vestibular foram destinadas a candidatos negros. O documento também previa a disponibilidade de vagas para indígenas, conforme a demanda específica.

Em 2018, o balanço dos 15 anos das cotas identificou que 7,6 mil estudantes ingressaram na UnB por meio das cotas raciais, conforme o levantamento do Decanato de Planejamento, Orçamento e Avaliação Institucional (DPO). Além disso, casos como o da UnB inspiraram a criação da ​Lei de Cotas para o Ensino Superior​, que fixa a reserva de vagas para candidatos provenientes de escolas públicas.

O estudante de enfermagem Juarez Coelho, 23, saiu do interior do Maranhão para estudar em Brasília. Juarez ingressou na UnB por meio das cotas raciais. Segundo ele, esse sistema foi muito importante para que realizasse seu sonho, mas isso não determinou como seria sua performance ao longo do curso, “não é porque eu sou cotista e passei com uma determinada nota menor que eu terei um desempenho ruim. Não, não é isso. Tanto que hoje, na faculdade, eu estou de igual a igual com pessoas que vieram do sistema de concorrência universal”, afirmou.

Já para Helen Neves, 23, estudante de antropologia e ciências sociais na UnB, o ingresso por cotas foi o primeiro passo para se reconhecer no universo negro, motivado pela participação em coletivos na Universidade. Helen afirma que a UnB é um universo à parte porque é um espaço aberto para conversas sobre raça e orientação sexual, mas que isso não se aplica para o resto da sociedade.

A estudante explica que convive com o racismo diariamente e isso faz com que ela tenha um cuidado redobrado em certos locais. “Quando eu entro em uma loja eles ficam me olhando como se eu fosse roubar. Eu sempre busco manter as minhas mãos visíveis quando vou comprar alguma coisa, deixo longe do meu corpo para que as câmeras e as pessoas que estão lá possam perceber que vou comprar aquilo”, relatou.

Coletivos negros

Assim como foi com Helen, movimentos e militâncias podem ajudar no processo de reconhecimento e aprendizagem dentro do espaço universitário. E apesar de não ser comum em todos os cursos de graduação da UnB, grupos com essa proposta são capazes de proporcionar lugares para discussão da temática racial. A reportagem encontrou três coletivos que trabalham com essa proposta: o Maré, o GPPretas e o Negrex.

Com o objetivo de possibilitar um espaço de conversa, debate e, principalmente, pesquisa sobre Direito e Relações Raciais, o Núcleo de Estudos em Cultura Jurídica e Atlântico Negro - conhecido como Maré - atua desde 2015. As suas principais conquistas são diversas, mas destaca-se a oferta de uma disciplina optativa na Faculdade de Direito (FD) e o sucesso na luta pela aplicação de cotas raciais na pós-graduação da FD.

Já o GPPretas é um grupo criado com o propósito de acolher e fortalecer estudantes negros do curso de Gestão de Políticas Públicas da UnB. O coletivo concentra suas atividades na produção de eventos para os estudantes, debates, rodas de conversas e visitas à escolas. Além disso, também tenta ampliar o compromisso em construir políticas públicas com recorte racial de maior eficaz para a população negra.

E o Negrex atua no curso de Medicina de diversas universidade federais do país, incluindo a UnB. O coletivo trabalha com temas relacionados à vida acadêmica dos estudantes da área de saúde. E com assuntos raciais, como colorismo, racionalidades e representatividade. O grupo soma conquistas como a rede de contatos ao redor do Brasil, uma biblioteca digital, e a influência no afastamento de um professor racista da Faculdade de Medicina (FM).

Representatividade artística

Já no campo das artes, destaca-se a promessa de um curta-metragem sobre os 15 anos de cotas na UnB e fotografias que retratam, sob uma nova óptica, o estudante universitário cotista.

Rumo é o nome do curta-metragem que, apesar de ainda estar na fase de inicial, promete ser um documentário que “retrate a trajetória da implementação das cotas raciais dentro da UnB pelo olhar de cotistas e pelo ponto de vista institucional por meio da professora Dione Oliveira - relatora das cotas raciais”, afirmou os idealizadores, Marcus Vinicius e o Bruno Victor, bacharéis em Audiovisual pela UnB.

Atualmente, Marcus e Bruno estão arrecadando o dinheiro para custear a produção do curta. Por meio de um site, o público pode doar diferentes quantias. A meta dos cineastas é atingir R$ 5 mil.

Enquanto isso, o fotógrafo Marconi Cristino, 38, estudante de artes cênicas, está empenhado na produção de uma série de ensaios sobre representatividade negra dentro da Universidade. Ele lembra que apesar do aumento na quantidade de alunos negros e pardos na UnB, o número de estudantes brancos ainda é maior.

Pensando nessa temática, o artista executa pequenas intervenções artísticas por meio da coleta de imagens de estudantes negros no espaço universitário. Segundo ele, o objetivo é “mostrar que tem alunos negros na UnB e essas pessoas estão ocupando o espaço e produzindo”. Uma dessas intervenções pode ser encontrada na entrada da Diretoria de Diversidade (DIV) da UnB e pelo seu perfil no Instagram.

Através do Facebook, os interessados podem acessar mais informações sobre os coletivos citados pela reportagem: Maré, GPPretas e Negrex. Conheça outros movimentos e pessoas que compõem a comunidade acadêmica da UnB por meio do vídeo.