Opinião
Meu lugar na Universidade Pública

Nasci no Piauí há 20 anos, filha de autônomo e empregada doméstica. Prazer, me chamo Carla. Sou a quarta filha da minha mãe e segunda do meu pai, a única dos dois. Fui a única criada por pai e mãe, meu privilégio.

Cresci na cozinha da casa onde minha mãe trabalhava. A filha da empregada deixava os filhos do patrão agitados demais, “vamos evitar que a Carlinha agite os meninos”. Eu também “era bagunceira”, dizia a patroa aos filhos. Minha mãe fez questão que eu estudasse em escolas públicas próximas ao seu trabalho, afinal, elas tinham a melhor qualidade de ensino.

Estudei a vida inteira em escola pública, sempre correndo atrás de não reprovar e, na maior parte do tempo, aproveitei bastante os professores, colegas, amigos e os espaços. Não fui uma aluna de dar trabalho, mas era comunicativa demais. “A Carla conversa muito”, diziam os professores. Talvez já fosse um sinal do que ia cursar no futuro. Na escola pública tive oportunidade de me apaixonar pelo teatro, participar de feiras de ciência, feiras gastronômicas e arrisquei um pouco na dança, o que não deu muito certo.

A escola pública foi meu lar por 12 anos, não havia outro caminho a não ser ir para a universidade pública também, este era o ápice da vida acadêmica. Meu ensino médio foi uma jornada, como guia, tive o corpo docente do CEM Setor Leste. Todo ano tinha a euforia do Programa de Avaliação Seriada (PAS), palestras, preparativos e lembretes, um preparativo para a ansiedade que perdurou o 3º ano inteiro.

A educação básica não foi suficiente para eu encarar a terceira etapa do PAS e o Enem. Tive que correr atrás de um cursinho pré-vestibular gratuito, pois não poderia me dar ao luxo de gastar o dinheiro que meus pais não tinham com cursinhos particulares. Minha jornada dupla para a realização do sonho da universidade pública apenas começava.

O sonho era o curso de Jornalismo na Universidade de Brasília (UnB) e a realização chegou na chamada para o segundo semestre de 2017, graças às cotas, pelas quais tive que brigar com o Cebraspe (Cespe à época) e que me fizeram perder mais de 5 Kg para a ansiedade. Meus pais ficaram felizes, eu estava feliz, era finalmente a primeira pessoa da família a entrar numa universidade federal.

A vida acadêmica sempre foi agitada: aula pela manhã e tarde, correr atrás de matérias que o Matrícula Web provavelmente iria rejeitar e bem, essa parte, todo mundo já conhece. No segundo semestre as prioridades mudaram, eu precisava de um estágio, a saúde mental não ia tão bem e meus amigos e eu não víamos lugar para a gente na universidade.

Estudantes da assistência precisam dar duro para manter os auxílios, sempre ter o mínimo de matéria e conciliar vida acadêmica com estágio. Como ser um bom profissional se não tenho oportunidade de ter um bom computador? Se não posso participar de uma empresa júnior ou se não tenho acesso aos melhores cursos? Como lidar com um espaço onde meus colegas conseguem ir de Uber ou carro para a aula e eu preciso estar pronta duas horas antes de seu início, para tentar não me atrasar para esta mesma aula?

Nós resistimos ao espaço que não prioriza quem está em situação de risco. A universidade pública é um espaço elitizado, no qual temos que lidar com professores que não abrem mão da chamada no início da aula, que usam 7 metodologias diferentes de avaliação e que preferem o discurso meritocrático, de que “quem quer faz acontecer”, mas esquece que a realidade e as oportunidades são diferentes para muitos. Não podemos abrir mão de um estágio para dedicar tempo integral à faculdade, já que, por muitas vezes, é o salário deste que contribui para a renda em casa. Assim, continuamos abrindo mão de nossa saúde mental e física. Cada vez mais.

Hoje, como estudante do quinto semestre, estou longe de estar preparada para o mercado de trabalho. Me faltam recursos e tempo, mas eu quero! Meus amigos, por exemplo, estagiam das 14h às 22h porque querem muito ser profissionais de qualidade e precisam mostrar que são capazes de entrar num mercado de trabalho escasso.

Esperamos que professores percebam as diferentes realidades numa sala de aula. Uma universidade que se preocupe com a saúde de seus professores e estudantes, que promova a educação acessível para alunos com especificidades. Para que seja espaço que atende e entenda às realidades de seu universo de pessoas, por uma universidade que respeite a diversidade.

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