No dia 24 de maio de 2019, o ministro da educação, Abraham Weintreub, publicou um vídeo polêmico em seu twitter afirmando que o MEC recebeu cartas e mensagens de pais de alunos, em que estes informavam que professores estariam coagindo seus filhos a participarem das manifestações contra os cortes da educação do dia 30 de maio, e também a abertura de um portal de “denúncias” e de “provas” contra os professores que estariam influenciando seus alunos a participarem das manifestações. O ministro informou que este processo é ilegal.
No dia seguinte após o vídeo, o Ministério da Educação emitiu uma nota oficial reproduzindo o que foi dito pelo ministro Weintreub e também declarou que os professores deveriam cumprir sua carga horária e que não poderiam deixar de exercer suas respectivas funções em prol de manifestações: “Vale ressaltar que os servidores públicos têm a obrigatoriedade de cumprir a carga horária de trabalho, conforme os regimes jurídicos federais e estaduais e podem ter o ponto cortado em caso de falta injustificada. Ou seja, os servidores não podem deixar de desempenhar suas atividades nas instituições de ensino para participarem desses movimentos”.
Como resposta ao vídeo e também a nota emitida pelo MEC, o deputado do PT-SP, Alexandre Padilha, juntamente com o ex-reitor da universidade de Brasília (UnB), José Geraldo de Sousa Junior e o advogado Patrick Mariano Gomes que foi encaminhado uma representação para a Procuradoria dos Direitos do Cidadão.
Conversamos com o ex-reitor da UnB para sabermos com mais detalhes a respeito dessa representação.
CAMPUS: O que simboliza essa representação contra o ministro?
JOSÉ GERALDO: Atravessamos um momento crítico no qual a universidade é alvo de agressões sem precedentes, tanto mais inusitadas porque provenientes das altas autoridades governamentais, entre elas o titular da presidência da República e seu ministro da Educação. Por isso que em já duas vezes, acabei por protocolizar, assinando em conjunto com ilustres parlamentares – Paulo Pimenta, Wadih Damous, Alexandre Padilha e com os juristas Marcelo Semer e Patrick Mariano, representações em defesa da universidade, na Comissão de Ética Pública e na Procuradoria Geral da República.
Penso que o simbólico que atravessa essa iniciativa expressa que é um grave desvio de finalidade, é uma ofensa direta à Lei de Diretrizes e Bases da Educação [LDB] e a própria Constituição Federal, no que toca ao princípio da autonomia e da liberdade de ensinar. No primeiro caso, com motivação imprópria – reprimir balbúrdia – incide em responsabilidade, considerando a exigência de adequada fundamentação do ato, que deve respeitar a impessoalidade, a transparência e a legalidade e não a objeção difusa de politização. Veja-me o artigo. 37 da Constituição Federal. No segundo caso, com ofensa também às normas convencionais – Convenção Americana – imiscuindo-se no âmbito da autonomia. Em época recente, por essas mesmas razões representei contra o ministro da Educação na PGR [Procuradoria Geral da República] e na Comissão de Ética Pública [da Presidência da República]. Agora vejo que um deputado indica que vai entrar com ADPF (Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental) diretamente no STF [Supremo Tribunal Federal]. Somente entidades nacionais podem fazê-lo, no caso partido. Mas espero que a ANDIFES [Associação Nacional de Dirigentes e Instituições Federais de Ensino] também o faça, porque a ameaça é a todo o sistema universitário federal.
Na mais recente (PRG 00265840/2019), já recebida e acostada ao Inquérito Civil n. 1.29.000.001909/2019-20, ela instrui o procedimento de apuração do “posicionamento do Ministério da Educação que veda abordagem, análise, discussão ou debate acerca da participação de integrantes da comunidade escolar em atos públicos”. Tal como salientamos na peça que teve ampla repercussão, “No caso dos presentes autos, o Representado não apenas evidenciou nítida opção antidemocrática, arbitrária e, portanto, autoritária, como praticou atos de ofício no exercício de função pública para fazer prevalecer esta visão de mundo sobre milhões de brasileiros e brasileiras o que, por evidente, o torna passível de responsabilização nas esferas do direito penal e do direito administrativo”.
Nesta conjuntura, pois, de forte incidência desconstituinte, colocar-se na trincheira de defesa das conquistas e dos avanços políticos desenhados no Pacto de 1988, tem sido a convocatória irrecusável da luta por cidadania e por direitos. Em atos públicos, mobilizações, artigos, essa tem sido a agenda que nos convoca e compromete.
CAMPUS: Como fica o papel do professor em relação as manifestações que aconteceram? Cabe a ele o estímulo a seus alunos a participarem?
JOSÉ GERALDO: O espaço de ensino, universitário ou não, é o do pensamento crítico e interpelante, necessário à formação de culturas aptas a pensar o mundo e a contribuir para a sua transformação de modo justo e solidário, tal qual desde a mais remota antiguidade ocidental se inscreveu como base da Paidéia, a formação e a educação do “homem”(assim entre aspas, por conta do redutor masculino dessa cultura. Essa noção se expressa na resposta de Fênix o preceptor de Aquiles, orientando o seu discípulo para o bom domínio da educação, apta a lhe preparar para saber dizer belas palavras, mas também a poder orientar sua ação transformadora no mundo. Por isso que a autonomia e a liberdade de ensinar são princípios que caracterizam a educação institucionalizada e a nossa Constituição assegura esses fundamentos. Mas também em sede de direitos humanos internacionais há diretrizes seguras que asseguram esses princípios. Veja-se, nesse sentido, o Comentário Geral 13 do Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ONU), segundo o qual ss membros da comunidade acadêmica são livres, de forma individual ou coletiva, de procurar, desenvolver e transmitir o conhecimento e ideias, por meio de investigação, da docência, do estudo, do debate, da documentação, da produção, da criação ou da escrita. A liberdade acadêmica inclui a liberdade do indivíduo para expressar livremente as suas opiniões sobre a instituição ou sistema no qual trabalham, para desempenhar as suas funções sem discriminação nem medo de repressão por parte do Estado ou de qualquer outra instituição, de participar em organismos acadêmicos profissionais ou representativos e de desfrutar de todos os direitos humanos reconhecidos internacionalmente que se apliquem aos outros indivíduos na mesma jurisdição. A satisfação da liberdade acadêmica implica obrigações, como o dever de respeitar a liberdade acadêmica dos outros, assegurar uma discussão justa de opiniões contrarias e tratar todos sem discriminação por nenhum dos motivos proibidos. Como disse, num tempo obscurantista, de mobilizações correcionais, de patrulhamentos ideológicos, de iniciativas legislativas de interdições, logo denominadas de “mordaças”, aferições curriculares na suspeição a temas de fronteira, em especial os que abordam questões de classe, raça ou gênero, preservar esse espaço é um imperativo democrático. Por isso, também, a representação contra uma autoridade que não parece ter a dimensão teórica e política da responsabilidade que pesa sobre ela.
CAMPUS: O MEC estaria excedendo suas funções?
JOSÉ GERALDO: Sem dúvida, e é o que procuramos demonstrar com a Representação.
CAMPUS: O que justifica esse descumprimento a constituição por parte do MEC? Seria desconhecimento a respeito de nossas leis e a maneira pela qual nosso país é regido?
JOSÉ GERALDO: Penso que está se definindo um modo de governança caracterizado por uma profunda desconsideração à Constituição e à legislação geral. Não só na educação, mas em vários planos. Uma característica do autoritarismo e do desprezo ao processo democrático que se experimentava no País desde a Constituinte e dos esforços de redemocratização empreendidos desde 1988. Note-se as iniciativas nesse sentido, quanto à questão do desarmamento, da extinção de conselhos, do esvaziamento funcional de órgãos incumbidos de fiscalização de direitos. As medidas vão sendo tomadas até que no âmbito legislativo ou judicial medidas restauradoras seja adotadas indicando a inconstitucionalidade ou a ilegalidade dessas medidas. Assim também no plano educacional, com iniciativas de intervenção (escolha de dirigentes), interferência no sistema de comunicação e de transparência (proibição de manutenção de sites) e cortes orçamentários. Todas essas iniciativas têm rejeitadas por ação política (manifestações, paralisações, greves) ou por medidas judiciais que visam a preservar o campo da autonomia prevista na Constituição.
CAMPUS: Como lidamos com essas inconstitucionalidades por parte do MEC?
JOSÉ GERALDO: Reagindo do modo como acabei de enunciar. A própria Representação é uma forma. Em 2018, logo após o afastamento da Presidente Dilma, também apresentei com os Deputados Wadih Damous, Paulo Pimenta, o magistrado Marcelo Semer e o jurista Patrick Mariano, Representações ao Conselho de Ética Pública e à Procuradoria Geral da República, contra o Ministro Mendonça Filho, quando este declarou que pretendia interferir na UnB em razão da criação de disciplina para analisar o Golpe de 2016. Como se recorda, após isso, o Ministro recuou e reconheceu a autonomia da universidade.
CAMPUS: Qual o papel da UnB e de outras instituições públicas diante de tais inconstitucionalidades?
JOSÉ GERALDO: Exercitar as suas atribuições legais e constitucionais. No caso da instituição universitária, defender a sua autonomia, fortalecendo o seu espaço acadêmico, plural e crítico, para a sua defesa institucional, Fazê-lo de modo teórico por meio de debates e formação de opinião, valendo-se de sua competência analítico-interpretativa. De modo político para defender essa institucionalidade, tal como tem sido nosso percurso histórico. Ainda recentemente nos mobilizamos para expressar nosso repúdio contra as tentativas de interferência em nosso espaço autônomo. Foi assim quando a BCE sofreu vandalismo em seu acervo de obras de direitos humanos, no abraço que simbolizou nossa disposição quando forçam anunciados cortes orçamentários e assim, toda vez que essas ameaças se armem contra os valores que nos constituem. E fazê-lo na confiança de que que, a despeito das injunções e incertezas da conjuntura, há reservas de posicionamento solidário aos direitos fundamentais e aos princípios constitucionais democráticos, como por exemplo, na disposição do Supremo tribunal Federal, exatamente quando se procurou reprimir e interferir no espaço autônomo da universidade e aquela Corte, atualizou o entendimento de que “Liberdade de pensamento não é concessão do Estado. É direito fundamental do indivíduo, que pode até mesmo contrapor-se ao Estado”, afirmando nessa decisão a ministra Cármen Lúcia (ADPF) 548, em garantia da livre manifestação de ideias em universidades, que “O exercício de autoridade não se pode converter em ato de autoritarismo.