Por Dione O. Moura,
relatora do Plano de Metas para a Integração Social, Étnica e Racial da Universidade de Brasília (UnB).
Publicado originalmente no Correio Braziliense em 20/11/2019 04:00
A partir da minha experiência de acadêmica negra, na tônica dos debates e reflexões em torno do 20 de Novembro, Dia da Consciência Negra, abro aqui um pensar alto, um pensar coletivo, um pensar em torno do quanto deve surpreender muitas pessoas — mas não a mim — o fato de que, passados 15 anos de implantação de sistemas de cotas nas universidades públicas brasileiras, tais instituições não só não caíram de qualidade, como tiveram seus indicadores de qualidade quintuplicados. E a Universidade de Brasília (UnB) é uma delas.
Minha reflexão parte de uma base empírica e vivencial, enquanto vivência cultural, sobretudo enquanto vivência acadêmica, científica e de gestão de políticas públicas e políticas culturais no encontro educação/diversidade cultural/memória coletiva/comunicação. Sou docente da UnB e, nas minhas pesquisas, as quais alcançam a interface comunicação/sociedade, tenho, como um dos campos centrais, a questão que carrego no meu lugar social: sou uma mulher negra, uma mãe negra, uma pesquisadora negra, uma jornalista negra, uma professora negra. Nessa vivência histórica de ser uma mulher negra, uma intelectual negra, uma pensadora negra, enfrentei — e enfrento — muitos desafios e tenho um bom conjunto de batalhas vencidas.
As experiências que tenho empreendido, no âmbito da pesquisa, da pesquisa-ação, da gestão de projetos culturais, da gestão de políticas públicas, da autoria ou da orientação de projetos de pesquisa (TCCs, iniciação científica, graduação, mestrado, doutorado e supervisão de Pós Doc), as quais tenho desenvolvido no âmbito da UnB e em parceria com outras universidades federais nas duas últimas décadas, apenas confirmam que, de fato, como esperado por muitos de nós que defendemos as políticas de cotas como medida de reparação histórica, o acesso de jovens negras e negros, indígenas e/ou de jovens oriundos de escolas públicas, assim como de jovens com menor renda apenas foi positivo. Tal acesso contribuiu para o equilíbrio da representação étnico-racial e social da população brasileira nas universidades.
No cenário atual, passados esses quinze anos de políticas de inclusão, as universitárias e os universitários que estudam e produzem pesquisa e extensão nas salas de aula, grupos de pesquisa, laboratórios e trabalhos de campo são mais parecidos com as pessoas que estão fora dos ambientes universitários. O que significa esse “ser mais parecido”? Por um lado, que esse estudante tem características étnico-raciais, sociodemográficas e culturais mais parecidas com as do jovem brasileiro. Por outro lado, também possui uma vivência cultural prévia, uma ancestralidade histórica mais parecida entre universitários e a sociedade brasileira.
Por fim, isso significa, ainda, que diminuímos a exclusão no sistema universitário. Ainda não somos universidades com a “cara do Brasil”, mas já somos universidades mais parecidas com o Brasil. As salas de aula, em termos de fotografia social, estão mais parecidas com o cidadão que está no ônibus. Com nós que herdamos o processo de escravidão, cujos avós, bisavós ou tataravós vieram raptados do continente africano, nos porões dos navios, proibidos de praticarem sua religiosidade, sua língua, sua culinária. Proibidos de portarem suas vestes, de carregarem no colo suas crianças, de estarem ao lado de seus familiares e povos. É dessa herança que agora, após os múltiplos sistemas de cotas, é dessa herança que nos tornamos mais próximos.
A universidade brasileira, na segunda década do século 21, contraria as preconceituosas expectativas dos críticos às políticas de cotas e subiu nos indicadores de qualidade, não caiu. Todos e todas deveríamos ter orgulho desse resultado. Devemos sentir honra por vermos que uma universidade mais inclusiva é (surpresa??!!) uma universidade de mais qualidade. Aprendemos que inclusão nunca torna a universidade pior, pelo contrário.