Universidade
Palestra de Mia Couto encerra Semana Universitária

O auditório do Centro Cultural da ADUnB estava lotado. Com espaço para 520 pessoas, o público já ocupava as escadas à espera de Mia Couto. O escritor, jornalista e biólogo moçambicano encerrou, na sexta-feira (27), a 19º Semana Universitária da Universidade de Brasília (UnB). O tema da Semana também foi título da palestra de Mia: os “encontros que transformam” conduziram o que o próprio escritor definiu como uma “troca”.

Mia Couto iniciou sua palestra com uma reflexão sobre o papel da literatura em um mundo onde as relações humanas são tão banalizadas e os encontros acontecem de forma tão superficial. Ele cita Vinícius de Morais: “A vida é a arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida”. Couto adapta a frase para a realidade de hoje: “ É preciso muita arte para que o desencontro não aconteça”.

Assim introduz o objetivo principal da literatura e da poesia, que, de acordo com ele, é o de “fabricar encontros”. “Fazer com que essas distâncias que são criadas pelo mundo, pelo tempo, pela geografia se dissolvam em uma simples história, em um simples poema”.

O escritor ainda faz um alerta aos governos que, em contrapartida ao papel da arte em tornar comum aquilo que é humano, propõem exatamente o inverso. Impõem o ódio e a segregação, atacam instituições democráticas, sistemas de produção do saber e tudo aquilo que representa a liberdade. “E assim deixa de existir a destruição da Amazônia , deixa de existir a criança que foi baleada pela polícia, deixa de existir aquilo que se manifesta como ameaça e como censura”, afirma. São governos e governantes - ele citou nominalmente o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump - que tornam “a política inviável e a democracia impossível”, ainda nas palavras de Couto.

Seus livros

Ao ser perguntado sobre se sua literatura seria diferente se ele fosse negro, Mia Couto responde que as dificuldades de publicação seriam bem maiores e, assim, reconhece seu privilégio branco. No entanto, afirma que sua literatura seria a mesma e ainda acrescenta sua opinião favorável a questão das cotas no Brasil: “Os brancos tiveram uma cota também ao seu favor”.

Em relação ao seu livro Lembranças da adolescência em Beira (cidade natal na qual viveu até os 17 anos), que tem previsão de ser terminado até final do ano, Mia Couto diz: “É um livro sobre a minha cidade, essa cidade que me trouxe no colo, que me botou história, que agora foi atingida por esse ciclone. É uma espécie de declaração de que essa cidade sou eu, eu sou parte dela e ela me ajudou a ser escritor. Então não é um livro de memórias.”

O escritor moçambicano Mia Couto é ovacionado pelo público no fechamento da Semana Universitária.

Para Couto, não é mundo fácil para quem quer escrever, mas a escrita é parte de quem ele é. “Escrever é uma maneira que eu confirmo a mim mesmo no mundo, é minha maneira de existir”.

Ele elogiou a grandeza e diversidade da nação brasileira, que já produziu tantos expoentes na literatura e nas artes no geral, como Guimarães Rosa e Jorge Amado, grandes inspirações para o escritor. E disse que essa grandeza nunca será reduzida por um discurso pobre, comum dos atuais governantes.

Os livros do Chiquinho

Mais cedo nomeado Doutor Honoris Causa pela UnB, Mia Couto abriu espaço para perguntas. Com a ajuda de Alexandre Pilote, professor de literatura da UnB, o escritor as selecionou e respondeu. Francisco Joaquim, conhecido com “Chiquinho”, é livreiro na UnB há 44 anos. Ele questionou Mia Couto a respeito do futuro da leitura. Mia, que conheceu o livreiro em 2014 na Bienal do Livro, respondeu: “Enquanto houver Chiquinho, há leitura”. Admirador do escritor, ele classificou o evento como de “importância memorial” para seu histórico.

Mia encerrou destacando as desigualdades e falou sobre sua infância num Moçambique ditatorial. “Vi um mundo que não queria ver”, afirmou. “O ódio é um ópio, é um ópio legalizado, é uma arma fatal. Todos os dias este discurso inventa ameaças. Por este motivo, atacam a ciência, atacam a universidade, atacam a arte e o pensamento. Atacam tudo que sugerir que a liberdade é uma mera conquista e que a democracia é um modo para que a liberdade seja livre”.

Texto e imagens por Giulia Azevedo e Maria Clara Martinez, alunas da disciplina Apuração e Texto Jornalístico 1, sob supervisão e revisão do professor Solano Nascimento.